Marina Ratton e Marília Ponte, fundadoras da femtech Feel&Lilit, buscam resgatar o básico do prazer feminino e reconectar sexualidade e saúde

Adriele Marchesini*

A confusão estava armada: era a primeira vez que entrevistaríamos duas pessoas para um episódio do Vale do Suplício: Marina Ratton e Marília Ponte,  sócias da femtech de saúde sexual Feel&Lilit. E não sei por que raios eu encasquetei que Marina tinha mais cara de Marília e Marília, como consequência, só poderia ter mais cara de Marina. Fiz questão de emitir minha nota de repúdio travestida de erro já nos primeiros segundos da conversa. “Mas a gente também não facilitou, né? Parece dupla sertaneja”, me socorreu a verdadeira Marília, se adiantando com a piadinha que estava prevista para a próxima linha do roteiro.

A Feel&Lilit foi gestada durante a pandemia em dois ventres: Marina encabeçava pesquisas para  desenvolver um lubrificante íntimo 100% natural enquanto Marília investigava as principais necessidades das mulheres para criar um vibrador. Uma conhecida em comum intercedeu como alcoviteira corporativa: “você precisa conhecer a menina do lubrificante”, disse para uma, adaptando o final da frase para “menina do vibrador” quando encontrou com a outra. O arranjo estava feito.

O primeiro contato foi virtual, dada a imposição do isolamento social. “Quando eu vi a Marília, pensei: ‘minha sócia'”. O encontro presencial viria somente um ano depois, com empresas, vidas e pesquisas já integradas. “A gente se abraçou e parecia que já se conhecia há muito tempo”, disse uma delas. 

Para mulheres, por mulheres 

Femtechs são startups que criam soluções para necessidades específicas ao sexo biológico feminino, como maternidade, fertilidade, contracepção, menstruação, saúde pélvica e menopausa, além de prevenção e tratamento de doenças que afetam desproporcionalmente o perfil, como osteoporose e doenças cardiovasculares. 

Estudo da McKinsey aponta que em 2021 foram quase 300 rodadas de investimento em 763 startups do gênero avaliadas, movimentando US$ 2,5 bilhões no segmento. O potencial é gigantesco, já que estamos falando simplesmente de metade da população mundial: a consultoria Frost&Sullivan estima que esse mercado chegue a US$ 50 bilhões no mundo em 2025.

Mas uma coisa é encontrar soluções para mulheres; outra, um tanto diferente, é essa oferta ser feita especificamente por mulheres. Menos 5% das startups brasileiras são fundadas por empreendedoras, segundo a associação Femtechs Brasil. A desproporcionalidade não é exclusividade do universo corporativo; é um reflexo da nossa construção social, que deságua em diferentes leitos. 

Gozo e reprodução

Peguemos a própria ciência, que historicamente entende o corpo do homem como o corpo humano padrão e, portanto, conduz pesquisas a partir desse viés.  “Há sete vezes mais estudos sobre disfunção erétil do que sobre menopausa, sendo que o problema afeta uma parcela muito pequena dos homens e a fase acomete todas as mulheres entre os 40 e 50 anos”, alertou Ma(rília).

Se a menopausa, condição que tem demandas mercadológicas urgentes e rentáveis, é negligenciada, imagine o “supérfluo” microcosmo do prazer feminino. O clitóris surgiu e desapareceu dos livros de anatomia ao longo da história da medicina e foi apenas em 1998 que o órgão foi completamente mapeado, feito da urologista australiana Helen O’Connell. 

Gozo e reprodução foram separados de maneira silenciosa e violenta. Ao ignorar o órgão que carrega o prazer feminino como função primordial, a ciência deixou de investigar o óbvio e atrasou descobertas de intersecções pouco intuitivas e mais complexas; entregou ao tabu e ao fetichismo produtos que deveriam figurar nas naturalizadas prateleiras de cuidado pessoal. Os sintomas são óbvios, mas as consequências começam, apenas agora, a ser compreendidas. 

“Lançam um lubrificante sabor chantilly, cheio de açúcar, aumentando muito mais a chance de a mulher desenvolver candidíase”, conta Ma(rina). “A sexualidade feminina está muito mais fusionada com a nossa saúde do que parece estar. Temos muitas microjornadas e micromomentos que interferem na nossa qualidade sexual. Saúde e corpo saudáveis são muito determinantes de como a mulher vai sentir prazer.”

Nas pesquisas, ambas descobriram que as mulheres não queriam um novo vibrador cheio de frufru, que acendesse no escuro ou tivesse um botão supersônico; a demanda era por conhecimento, troca de informações e entendimento sobre como usar o dispositivo para o prazer. Também não era preciso inventar a roda com o lubrificante íntimo: um dos fatores mais sensíveis para as pesquisadas era a experiência de compra, tanto online quanto presencial. O resgate do básico, portanto, foi premissa fundamental da femtech. “O foco foi resolver a desigualdade de prazer que há entre homens e mulheres na relação íntima, o chamado ‘gap do orgasmo’, principalmente no caso de mulheres heterossexuais”, disse uma das Más.

A fusão da Feel e da Lilit talvez seja explicada pela complementaridade das oportunidades de negócio. Talvez seja uma resposta ao desejo e necessidade prementes de união feminina para fortalecer o atendimento a demandas há muitos anos ignoradas ou desprezadas. Ou talvez seja a consequência natural de um daqueles raros encontros da vida, nos quais valores inegociáveis são compartilhados ao mesmo tempo em que habilidades complementares nos tornam mais fortes. Confundir os nomes de Marília e Marina pouco importa, no fim.

Esse artigo foi publicado originalmente no portal Terra, leia aqui

*Adriele Marchesini é jornalista especializada em TI, negócios e Saúde com quase 20 anos de experiência. Depois de passar por redações de veículos como Estadão, Infomoney, ITWeb e CRN Brasil, cofundou as agências essense e Lightkeeper,  as quais já ajudaram mais de 80 empresas na construção de conteúdo narrativo multiplataforma para negócios. É coâncora do podcast Vale do Suplício. 

**Criado pelas jornalistas Adriele Marchesini e Silvia Noara Paladino, o podcast Vale do Suplício nasceu como uma contracultura aos empreendedores de palco – os típicos CEOs de MEI, escritores de textões no LinkedIn – para contar a história de empreendedores que falam pouco, mas fazem muito. Ouça no Spotify.

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