Ou como o isolamento imposto pelo coronavírus fez nossos colegas de trabalho invadirem a mais profunda expressão da nossa individualidade 

Quarta-feira. Dia primeiro de abril. Oitavo dia oficial da quarentena, imposta pelo governo estadual para conter a transmissão do coronavírus. Todos que podem trabalham em home office no Estado de São Paulo. 

Terceira conference call do dia. Câmeras abertas para estimular a interação social – afinal, ninguém tira o nariz para fora de casa se não é necessário e o calor humano já faz falta há alguns dias.  A mulher – ou, no caso, eu – segue explicando coisas a seus clientes enquanto, por fora do enquadramento da webcam, tenta impedir que seu gato suba no teclado do notebook. Um miado estridente faz ela perder a árdua batalha de fingir que nada fora do tema corporativo estava acontecendo. 

– Gente, desisto. Home office, sabem como é. Meu gato é assim mesmo, e ele vai miar ainda mais.

Todo mundo ri, balançando a cabeça em sinal de compreensão. Em um dos pequenos quadrados da tela está a cliente, com uma belíssima horta vertical de pano de fundo. Dá até para ler “hortelã” e “manjericão” em alguns potinhos. Aproveito o clima e elogio a plantação que se esgueira pelo que reconheço ser uma varanda. Nunca tinha visto aquela mulher com um sorriso  – que naquele momento cobria toda a parca extensão que lhe cabia da tela – tão vívido e verdadeiro. Sem esconder a empolgação, ela conta a história de quando montou aquele espaço verde na selva de pedra. E em meio à dureza e frieza das relações de negócios, de uma certa forma a vida também floresce. 

No barco tem até gatinhos

Já faz seis anos que trabalho no modelo home office e em todo esse período os meus gatos, Dio e Ozzy, já fizeram alguma participação especial em uma call e outra. De certa forma,  sempre arrancaram risadinhas dos participantes – afinal, quem não gosta de afrouxar a desconfortável armadura da conduta corporativa que vestimos a contragosto? Mas essa sensação de normalidade, de identificação, de “está tudo bem, estamos todos no mesmo barco”, nunca foi tão explícita quanto a deste primeiro de abril. Sim, porque estamos todos no mesmo barco, mesmo. A pandemia e o medo da mortalidade nos colocaram cara a cara com as iguais condições sob as quais sempre vivemos, mas que estavam suplantadas pelas condutas sociais, pelo dinheiro e pelas aparentes diferenciações. O reconhecimento da condição humana de nossos corpos nos destituiu do pódio ao qual nossa arrogância nos alçou. E essa confissão forçada não poderia ser uma oportunidade maior para as gerações que estão compartilhando essa inesperada década de 20 do século 21. É uma verdadeira oportunidade de resgatar relações em uma sociedade mercenária, utilitarista e descrente. 

Como o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman faz questão de esfregar em nossa cara na obra  Amor líquido sobre a fragilidade dos laços humanos: vivemos em uma cultura consumista,que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro. A promessa de aprender a arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a experiência amorosa à semelhança de outras mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e prometem desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem esforço”. Uma triste condição – a qual nunca fomos tão impelidos a destroçar.

Hey, humano!

Desde o início dos anos 2000, Bryan Kramer, cofundador da PureMatter,  preconizou o fim do “B2B e do B2C”, dando início à era do Human to Human, ou H2H – termo que mais para frente  intitulou seu livro. Ele descreve sua ideia:

 “Assim é como eu vejo:

Negócios não têm emoções. Pessoas têm.

Pessoas querem ser parte de algo maior do que elas mesmas. 

Pessoas querem sentir algo

Pessoas querem ser incluídas.

Pessoas querem entender.”

“Uau, que improvável, uma mulher grávida! =0”

A gente tem que ter falhado muito como sociedade para em plenos anos 2000 alguém contar como grande novidade que as relações são entre humanos, e não entre marcas. Que as relações são entre pessoas, não entre robôs fazedores de dinheiro. Mesmo assim, em 2019, a barriga prenha de Cristina Junqueira, cofundadora do Nubank, foi um marco na comunicação de negócios ao ser estampada na capa da Forbes. Que coisa, né? As regras da perpetuação da espécie também valem  para líderes de negócios. Isso era surpresa para você? De certa forma, era para todos nós. Que sociedade mais ingênua que éramos.

Pode entrar, só não repara a bagunça

E as ferramentas de colaboração permitiram que nossos colegas e parceiros de trabalho invadissem nossas casas, uma das mais profundas expressões de nossa individualidade. As tão sólidas paredes da nossa privacidade foram atravessadas pelas conference calls. O isolamento social, antagonicamente, nos aproximou, abrindo espaço para relações mais humanas. Os memes, o improvável registro de nossa evolução sociocultural, deixam isso claro:

É isso. Temos gatos que miam e querem cheirar a webcam, crianças que querem a mamãe ou precisam de ajuda nos estudos. Eventualmente, demonstramos ser tão hábeis com a tecnologia quanto um tubérculo, mas isso não significa que tenhamos nos tornados inaptos em nosso trabalho. Estamos aí, na condição humana – de nascer, eventualmente procriar e uma hora morrer, seja em uma pandemia ou em qualquer outra situação. Estabelecida nossa igualdade de condições, vamos fazer o melhor que podemos na construção de uma sociedade menos hipócrita, que tenta esconder o óbvio com os malfeitos enfeites dos códigos de conduta corporativos?

Então, deixa as criança invadir o comentário do papai na BBC. Ele é humano também.

Albertão, meu fechamento é você 

Esta é uma pequena fração, quase um diário de bordo, das impressões de quem está vivendo esses loucos tempos de pandemia global. Os efeitos, com certeza, são muito mais profundos e extensos do que qualquer um pode imaginar ou aferir.

Mas que as relações descritas por Zygmunt Bauman evoluam pela bela visão descrita em 1972 por Albert Einstein: “O ser humano vivencia a si mesmo e seus pensamentos como algo separado do resto do universo – numa espécie de ilusão de ótica de sua consciência. E essa ilusão é uma espécie de prisão que nos restringe a nossos desejos pessoais, conceitos e ao afeto por pessoas mais próximas. Nossa principal tarefa é a de nos livrarmos dessa prisão, ampliando o nosso círculo de compaixão, para que ele abranja todos os seres vivos e toda a natureza em sua beleza”.

Enquanto construímos esse caminho, deixo para você uma foto do que o Dio – meu gatinho – teve a pachorra de fazer depois de miar escandalizando a minha call (o gato de Schrödinger pode estar vivo ou morto, mas o meu, certamente, está causando).

Ele. Lambeu. O. Resto. De. Iogurte. Do. Pote.

Enquanto. Eu. Entrevistava.Um. Especialista. Sobre. Cloud. Computing.

Leia também:

A inteligência artificial vai, sim, substituir o ser humano – e por que isso é uma ironia

Serviço relacionado

No items found.