Thiago Júlio, gerente de inovação aberta do grupo DASA, garante: a transformação do setor já começou – e não temos mais como voltar atrás

Trabalho como jornalista há pouco mais de 12 anos e sempre me interessei por temas relacionados à Saúde. Comecei a cobrir o setor como negócio em 2017 e, em um dos primeiros eventos dos quais participei, assisti a uma palestra de um médico radiologista, que na época trabalhava no Hospital Israelita Albert Einstein. Ele falava sobre a urgência de inovar para transformar a Saúde, sob o risco do modelo atual se tornar insustentável.

Fiquei admirada com aquele discurso por alguns motivos: primeiro, ele era um líder muito jovem, em um setor tradicional e que, por isso mesmo, tem gestores mais experientes. Segundo porque, em meio a tantas falas sem prática que eu ouviria ali e também nos próximos anos, pensei: “está aí alguém que parece, de fato, ter vontade de tirar essas mudanças do papel.”

Dois anos e algumas outras oportunidades de ouvi-lo depois, me encontrei com Thiago Júlio, agora gerente de inovação aberta do grupo DASA. O cenário foi a sede do Cubo Health, hub de startups de Saúde que nasceu da parceria entre a gigante da medicina diagnóstica e o banco Itaú. E Thiago faz questão de enfatizar: muita coisa mudou nesses dois anos desde que o ouvi falar pela primeira vez.

Thiago Júlio: Saúde é um dos últimos terrenos a serem conquistados pela inovação

– Thiago, a Saúde passa por uma transformação profunda que vai além da adoção de tecnologia. Ela envolve, por exemplo, a entrada no mercado de novos players, com modelos de negócio inovadores e que pressionam o setor por mudanças há muito anunciadas, como a do modelo de remuneração. Como você avalia o cenário atual?

Acho que você já fez a análise na sua pergunta. Entendo isso mesmo: o setor acordou. Esses são temas que vêm sendo discutidos há algum tempo, que já foram mapeados, identificados e rotulados como importantes, mas a sensação que a gente tinha é que não havia um grande driver, uma vontade, digamos, não sei se é a melhor palavra, para endereçar esses problemas. Mas, nos últimos dois anos, pelo menos na minha visão, vi essa vontade surgir e acelerar algumas coisas. Um dos motivos é a economia. A inflação médica estourou, então, de um lado você tem um SUS que não consegue atender as demandas e, do outro, um sistema de Saúde Suplementar do qual a população depende cada vez mais, mas que fica cada vez mais caro. E a gente está vendo a situação das operadoras aí, que mexem, mudam, inovam e o resultado não vem. E há um terceiro lado, que é o contexto no qual estou inserido, que é essa nova economia, com startups, novos modelos de negócio, inovação de base tecnológica, essa coisa toda que vem do Vale do Silício e que chegou na Saúde. 

– E demorou para chegar, não é mesmo?

Sim, demorou. Basicamente, a Saúde é um dos últimos terrenos a serem conquistados. Isso vem de fora também, porque o paciente e o médico estão demandando. Poxa, se eu tenho inovação  em todas as áreas, por que não na Saúde? E claro que temos o pessoal que é empreendedor, inovador por natureza, que está vendo na Saúde uma oportunidade. O Cubo aqui é um exemplo disso. Agora temos dois drivers: as pessoas que estão inseridas no setor, vendo o que está acontecendo fora, e quem está fora vendo esse espaço que não está ocupado. E para o inovador, onde tem problema, tem também negócio. Quem vem de tecnologia, ou de outras áreas como fintech, varejo e digital, olha para a Saúde e vê as oportunidades. É um momento bem legal do setor nesse sentido, porque tem muita gente se importando e colocando em prática ações para tentar resolver esses problemas antigos, que ganharam, inclusive, novas ferramentas para ajudar nessa resolução.

– E gente com ideias novas, que podem dar um gás na Saúde também, né…

Sim, dar um gás e também fazer transferência de tecnologia. Trazer lições aprendidas com a onda do SaaS (software as a service), da nuvem, da IoT, todas essas tecnologias usadas em finanças, bancos, comércio eletrônico e varejo. É gente que pensou: peraí, isso aqui, com uma pequena adaptação, pode ser usado também na Saúde. Esse movimento é muito legal porque a gente ganha velocidade e não tem que fazer tudo do zero.

– Algo que eu estou ouvindo bastante nas minhas conversas com o pessoal de Saúde é a redescoberta da atenção primária, que é a base do SUS, e agora é vista também pelas operadoras, principalmente, como uma alternativa para brecar o aumento dos custos assistenciais e investir em prevenção. Mas sozinha ela não faz milagres. Que outras estratégias podem mudar o perfil dos serviços de Saúde, com foco em bem-estar e qualidade de vida?

Que bom que redescobriram a atenção primária. Porque ela não é só a base do SUS, mas é a base da medicina como um todo e do setor de Saúde. Hoje tive uma reunião no laboratório de inovação da DASA e uma pessoa que trabalha com a gente lembrou que só de usar a palavra ‘paciente’ significa que falhamos de certa forma, porque o ideal era que essa pessoa nem doente ficasse. Então, precisamos transformar o setor em indústria da Saúde, pois o que se fala hoje é em indústria da doença. A prevenção é um dos pontos legais para se apostar, com iniciativas que não necessariamente estão ligadas à área clínica health tech. Hoje, para mim, a maior health tech brasileira é a GymPass, porque ela faz as pessoas irem à academia. Ela não é uma startup que está no andar de Saúde aqui do Cubo, mas, em termos de tamanho e de impacto, ela está fazendo a transformação, até mesmo em escala global, agora que está se internacionalizando. Quando se fala em atenção primária e prevenção, ações assim contam muito. Tem startup de alimentação saudável no Cubo Health que também está ligada à Saúde. A gente está trazendo de novo elementos de cases de outras áreas porque, para fazer atenção primária, precisamos de educação física, de nutrição, não necessariamente do médico dentro do hospital. Acho legal a Saúde Suplementar olhar pra isso porque, primeiro, é a base da transformação e, segundo, porque qualquer tipo de modelo preditivo precisa de estratificação, e qualquer lógica de estratificação necessita da epidemiologia básica dos dados – e o dado de Saúde de Família hoje é super valioso. 

– Parece que também redescobriram a Saúde da Família…

Há pouco tempo, quando eu fiz faculdade, a Saúde da Família era low tech e high touch. Mas agora ela vai ficar muito high tech. Eu sou da radiologia, que é o oposto – uma área high tech e low touch. A gente está isolado, mas hoje a radiologia tem que se reinventar para ser high touch. A atenção primária deve ser vista por todos os players de Saúde, inclusive o  laboratório de medicina diagnóstica. Não significa ir lá e abrir uma clínica de primary care, mas sim avaliar como nós, enquanto laboratório, conseguimos contribuir com essas iniciativas de prevenção. O hospital também tem que se fazer a mesma pergunta. Mas antes precisamos resolver a equação financeira porque, em tese, o hospital ganha dinheiro com o paciente, então, se ele não tiver estratégia, quebra o negócio. Assim como a medicina diagnóstica, que vive de produzir exames. Se a gente para de fazer exames, o que vai ser? É um tema pra todos sentarem na mesa e discutirem, caso contrário, nunca vai evoluir.

– É o que você falou, Thiago, sentar junto para discutir, porque hoje está todo mundo separado. A gente até vê algumas tentativas de união, mas ainda há muita desconfiança no setor…

Sim. Na minha curta carreira na qual eu estou olhando para o setor não só como médico clínico, o que eu posso dizer é que nunca vi tanta gente na mesa como nos últimos dois anos. E proativamente. A DASA, por exemplo, é uma empresa que proativamente está chamando as outras para conversar. E se a Dasa aceita fazer um modelo de compartilhamento de risco com a operadora, a gente sabe que, no primeiro momento, a economia é da operadora. A DASA vai diminuir receita. Se a gente olha só o resultado financeiro, nunca vai sair do papel. Eu falo da DASA porque é o meu trabalho, mas tem um monte de gente que se senta nessa mesa. A DASA não faz se a operadora não topar. A operadora não faz se o hospital não topar. É uma cadeia. Gosto de falar mais em cadeia que em setor, porque na Saúde não dá para fazer nada sozinho.

– Você falou antes sobre os dados. E a Saúde inteira está descobrindo o poder dos dados e o que eles podem fazer pela assistência. Uma das tecnologias que vem ganhando destaque são os wearable devices. Só no primeiro trimestre de 2019, foram vendidas quase 50 milhões de unidades no mundo, alta de 55,2% em comparação com 2018. O queridinho ainda é o smartwatch, com 63% das vendas. A Apple, a líder do setor, anunciou, inclusive, atualizações em seu smartwatch. Nas palavras do CEO Tim Cook, ele é um “guardião inteligente para sua saúde”. Como você vê esse avanço?

O conceito de captar seus próprios dados não é novo. Acho que a gente está em um momento que tecnologicamente é possível, mas não tem valor. É muito legal tudo o que um wearable faz, mas quem é médico sabe que não adianta captar sinal vital, frequência cardíaca. É legal saber se a pessoa é ativa ou não, mas não há muito o que fazer com isso hoje. Com a versão do Apple Watch que faz o eletrocardiograma, apesar de ainda ter um pessoal que pode discutir que é pouco preciso, aí eu acho que a coisa começa a ficar mais séria. Minha visão é de que a gente está bem no vale da desilusão. Teve um pico há uns anos e hoje não se sabe o que fazer. Os números que você trouxe são bons, mas tem pesquisa que mostra que 50% desse monte de smartwatch e fitbit que se vende por aí vai pra gaveta depois de 2, 3 meses. Enfim…  eu acho que vamos achar o valor. Todos focam no que fazer com o dado, que não integra com o prontuário, mas eu ainda acho que o dado não é muito útil, falando como médico. Isso vai começar a ficar legal com wearable que pode detectar uma crise de epilepsia antes de ela se manifestar, por exemplo, e já tem uma startup brasileira que trabalha com isso. Ou, no caso do eletro, que consegue detectar fibrilação atrial. São pequenos casos, mas aí, de fato, você consegue ajudar. Precisamos maturar a coleta de dados, para ter sensores que captem dados mais relevantes, e também saber o que fazer com esses eles. 

– Outra tecnologia que fornece amplas possibilidades dentro desse ecossistema da Saúde do futuro é a inteligência artificial. Ela pode ser utilizada tanto na assistência quanto na gestão, oferecendo vantagens que vão da predição de doenças até insights de negócios. Mas é fato que ela também traz reflexões éticas. Quais são as mais importantes, na sua opinião, e como lidar com elas?

Antes da ética tem o pilar da lei. A gente tem que fazer o que está na lei e ponto final. Ainda mais uma empresa como a DASA, com capital aberto, auditoria, compliance, public relations, todo mundo olhando. Nesse sentido, a lei [Geral de Proteção de Dados, a LGPD, que entra em vigor em agosto de 2020] que existe agora é boa, independentemente de ter pontos que possam ser considerados ruins para a Saúde, porque até então a gente navegava em um ambiente de incertezas. O segundo fator que, assim como a lei, não dá para discutir, é o consentimento. O paciente é o dono do dado dele e tem que decidir o que pode ou não pode ser feito. O terceiro ponto, que também é indiscutível, é a ética. E como a gente aplica? Um exemplo: na DASA decidimos que, no nosso laboratório de inteligência artificial, todos os projetos têm que ser submetidos ao comitê de ética e pesquisa. É algo que não está na lei, mas a gente entende que se essa prática existe para pesquisa com drogas, com novos exames, porque não na IA? Mas tem uma história interessante aí que os comitês de ética não sabem exatamente como avaliar esses projetos, porque é a primeira vez que estão fazendo isso. Todo mundo está aprendendo.

– É porque está de fato acontecendo, mas é muito novo…

Exato. A gente viu isso dentro da DASA. A parte de tecnologia mesmo, que é treinar o modelo, fazer a rede, fazer a mágica acontecer, é a parte mais fácil. O first mile, até chegar ao ponto de montar um dataset, entregar para o radiologista e o pesquisador, colocar o data science trabalhar… na DASA, a gente levou muito tempo. Porque antes a gente teve que entender os três pilares que eu falei: a lei, o consentimento e a ética. E como fazer os contratos para obter consentimento da pessoa? Assim como aconteceu com o comitê de ética, o jurídico não sabia, eles tiveram que estudar. A TI, também. A lei e a ética dizem que temos que anonimizar o dado e criptografá-lo, mas como fazer isso? A gente pede para a TI e ela nunca fez, precisa aprender. São vários pedacinhos até você ter um dataset de 20 mil ressonâncias. Tem muito hype de IA por aí, mas quem faz mesmo identifica se é exagero pelo discurso. Na hora que vai  pra vida real, entram os aspectos éticos, legais e de aprendizado antes, e no last mile o desafio de, agora que o modelo está pronto, colocá-lo na rotina de 3 mil radiologistas. Como treinar esses profissionais, como integrar os dados com os sistemas que já existem? Estamos aprendendo e podemos direcionar o mercado ao mesmo tempo. 

– Você falou de um dos desafios da IA, que é treinar esses médicos radiologistas que vão trabalhar com ela. Afinal, essa tecnologia afeta muito a profissão dos radiologistas – que você conhece bem. Modelos que combinam deep learning e redes neurais já conseguem diagnosticar câncer mais rápido e com menos erros. E aí: o que vai acontecer com os médicos radiologistas?

Bom, vamos lá, essa é difícil. São duas visões que marcam essa discussão. Uma é a que você elegantemente sugeriu, que os radiologistas vão ficar sem emprego [risadas]. Tem essa visão catastrófica. Tá bom, se você tem um modelo que detecta doenças, que classifica alterações em exames e daqui a pouco dá até sugestão de tratamentos, para que vai servir o radiologista?

Muita gente me fala isso também, que jornalista daqui a pouco vai ser substituído…

Pois é, essa é uma das visões, que é um extremo. Eu acho pessimista e catastrófica. Mas tem o outro extremo, uma visão meio poliana, e eu também não compartilho dela, que é o discurso de superradiologista. Vamos tirar todas as tarefas tediosas, e o radiologista centauro vai surgir, o homem mais máquina. Eu acho que temos que mirar para esta última visão, mas também não dá para ser desonesto, pois toda automação e toda tecnologia desse tipo tem impacto socioeconômico. O que vai acontecer exatamente eu não sei. Vai precisar de menos radiologista? E o radiologista que ficar vai provavelmente ganhar mais? Ou não, essa tecnologia vai possibilitar uma escalada, com aumento do mercado e a necessidade de mais radiologistas? Quando veio a onda de digitalização da radiologia com o PACS [Sistema de Arquivamento e Comunicação de Imagens – Picture Archiving and Communication System], na época em que eu me formei, era a mesma discussão: vai precisar de menos radiologistas e o profissional vai ganhar menos. O que a gente viu foi o contrário – o mercado cresceu para a radiologia. Certamente algumas tarefas que o radiologista faz hoje vão cair. Ele não vai mais perder tempo procurando um nódulo, ou desenhando, medindo um tumor. Mas vão surgir tarefas novas, como o próprio treinamento de modelos. Hoje, metade do nosso time de IA na DASA é radiologista e treina os modelos. 

– A DASA é uma empresa que incentiva a inovação na Saúde. Foi ela quem, inclusive, investiu no projeto do Cubo Health, onde nós estamos conversando hoje. Como esse movimento começou dentro da empresa e quais os objetivos que você, como atual head de inovação, pretende alcançar?

Dentro da estratégia de inovação da DASA, ficou claro que precisávamos de uma frente de interação com startups. E talvez por uma boa coincidência, no mesmo momento que definimos isso, o Cubo estava com um projeto de expansão que incluía a criação de verticais. Foi assim: o Itaú, que é o fundador do Cubo, sempre foi muito bom em digital, fintechs, mas não conseguia ajudar a Saúde, a educação, essas áreas de nicho. Então eles procuraram um grande player da Saúde para comandar essa vertical e cocriar o ecossistema de Saúde, justamente quando a DASA queria expandir a interação com startups. Foi o timing perfeito. A gente trabalha junto com o Itaú e o Cubo, meu time fica aqui dentro. Em uma parte do dia fazemos a gestão da comunidade, trazemos as startups e as empresas e ajudamos a fomentar negócios. E também levamos essas startups para a DASA em forma de POC [Prova de conceito], de produto, de inovação mesmo. 

– Conte para nós alguns exemplos de projetos inovadores para a Saúde que estão surgindo aqui no Cubo…

Hoje temos 15 startups residentes. A gente seleciona por portfólio, para ter pelo menos uma startup que atue em cada fase da jornada do cliente de Saúde. Temos startups de agendamento, medicamentos, prontuários, que cuidam de levar o médico na casa dos pacientes, têm startup focada no uso de dados de IoT, outra que trabalha para operadora, a outra para laboratório ou hospital. Queremos montar um portfólio completo para que a gente consiga cumprir a missão de ajudar o setor de Saúde, apoiando esses novos entrantes e essa nova economia para que, de médio a longo prazo, seja um ecossistema ganha-ganha.

– Para finalizar, vamos a um exercício de futurologia: como será a Saúde no Brasil daqui a 30 anos?

Provavelmente só vamos tomar decisões baseados em dados. Teremos máquinas, algoritmos e softwares que vão apoiar a tomada de decisão em todos os momentos E não vai ter mais empirismo, decisões tomadas em julgamentos clínicos, isoladamente. Aliás, tanto na parte clínica quanto na parte de negócios, gerencial. E também teremos ferramentas digitais que vão garantir 100% de acesso, ou bem perto disso. Porque a nossa luta hoje ainda é garantir o acesso à Saúde para todos. E eu acho que, em breve, nós vamos chegar lá. Juntos.

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