Nós enrijecemos. Criamos um universo de processos, ternos e contratos ao qual chamamos de mercado corporativo. E isso nos causou um monte de problema

O conceito de nova economia traz consigo a ideia de que as relações comerciais passam a ser amparadas pela reputação de instituições, marcas e, acima de tudo, pessoas. Rachel Botsman, autora do livro “What’s Mine is Yours: How Collaborative Consumption Is Changing The Way We Live” (ou “O que é meu é seu: como o consumo colaborativo está mudando a maneira como vivemos”), definiu que a moeda dessa economia compartilhada, descentralizada, mais consciente e que derruba intermediários, é a confiança. Entregamos nossa comida, nossa segurança física e nossos pets a quem nunca vimos. E damos esse voto de confiança porque essa relação é estabelecida por influência do coletivo – uma rede de opiniões que chancela e tranquiliza as escolhas que fazemos.

Dá até um calorzinho no coração. Mas sabe como é – eu sou jornalista e todas as minhas certezas e saciedades, em algum momento, acabam em dúvida. “Você pergunta demais”, ouvi algumas vezes na minha vida, sentindo, confesso, uma pontinha de orgulho. E quando penso em como a economia compartilhada se encaixa em nossa urgência por novas referências, eu me sinto bem, mas também confusa. Afinal, quando foi que deixamos de usar esse recurso tão primitivo – o ato de acreditar em quem é digno de nossa confiança, ou que não fez nada (ainda) para não merecê-la – ao definirmos o que colocamos para dentro da nossa vida?

Eu não sei quando, mas tenho um palpite sobre o como.

Nós enrijecemos. Criamos palavras chatas para formalizar o diálogo e nos isentar de pessoalidade, como se isso fosse possível. Substituímos o sincero “obrigado” por “grato”; um natural “olá, pessoal” ou “olá a todos” por “caros” ou “prezados”; a ordem direta de frase pela indireta, nos ausentando do verbo e da ação, especialmente quando precisamos reconhecer um erro (por favor, não faça isso). Estabelecemos marcas poderosas, graças a uma publicidade que sabe nos iludir melhor do que ninguém exceto nós mesmos. Criamos um universo de processos, ternos e contratos ao qual chamamos de mercado corporativo. Interrompemos diálogos, de maneira fria e deselegante, quando não sabemos – ou não queremos – lidar com o problema do outro. E é claro que isso nos causou um monte de problemas.

A Saúde é uma vítima de nossa descaracterização. Veja a (eterna) discussão sobre modelos de remuneração: por muito tempo, as tentativas de mudança efetiva trombaram com a defesa de interesses particularidades. Apartados uns dos outros e da única realidade possível – aquela em que todos coexistem e não podem viver sozinhos -, operadoras, instituições hospitalares, órgãos reguladores e demais players do setor se fecharam para o diálogo. Recolheram-se aos seus dramas individuais sem considerar que todos ocupam o mesmo palco. Felizmente, isso começa a mudar, embora as transformações mais básicas do setor mal tenham começado.

Está aí outra lição que a gramática nos revela: empresas não podem ser sujeitos de ações que, necessariamente, só ocorrem pela vontade e capacidade humanas. Empresas não conversam – pessoas, sim. Empresas não se relacionam entre si – pessoas, sim. “Lógico, Silvia, que coisa mais banal você está dizendo”, você pensa. Mas aqui volto à ideia da economia colaborativa, pois ela propõe o resgate do que jamais deveríamos ter perdido – a noção de que toda solução só pode ser resultado de nosso esforço coletivo, de força de caráter e da confiança estabelecida com quem nos relacionamos. Antes de representar uma marca, representamos a nós mesmos, com todas as glórias e falhas humanas. E, nesse contexto, a relação sincera, cuidadosa e (por que não?) afetuosa com as pessoas pode ocorrer, também, no meio profissional.

Eu quero gostar das pessoas com quem trabalho, dá licença?

Pesquisas realizadas por instituições respeitáveis no mundo todo mostram, por meio de experimentos com animais e crianças bem pequenas, que a empatia nos habita, de alguma forma, desde o momento em que passamos a existir neste planeta. Embora precisemos desenvolver essa virtude ao longo da vida, o seu embrião já está depositado em nossa essência. E se a confiança é a moeda do futuro, eu só posso crer que a empatia seja a fonte dessa matéria-prima inesgotável.

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