Saiba o que pensam quatro estudantes de medicina da geração Y e como eles se encaixam nas transformações do setor
Era o ano de 1816 e o médico francês René Laennec criava um longo tubo de papel laminado que canalizava o som do tórax dos pacientes diretamente para os seus ouvidos. Surgia, assim, um dos símbolos da medicina do século 20: o estetoscópio. De início, o aparelho não foi bem aceito pelos colegas de profissão, mas o tempo provaria que não se tratava de um desafio à tecnologia, mas, sim, à capacidade do profissional de medicina em aceitar e incorporar o novo.
Voltemos para 2019. À medida que as transformações tecnológicas na Saúde assumem escala exponencial, a resistência de alguns profissionais em relação a elas também aumenta. Foi por isso que procurei estudantes de medicina e ouvi suas histórias, com o intuito de entender como esses jovens encaram um setor em profunda transformação e, ainda, como estão se preparando para fazer parte dele.
“Entender a medicina do futuro é entender esse jovem que está entrando no mercado agora. E ele quer uma relação de trabalho mais horizontal, com mais diálogo e menos hierarquia. São pessoas que dificilmente vão passar a vida no mesmo hospital, que não abrem mão das relações pessoais e que enxergam o paciente como corresponsável pelo processo de cuidado”, como me explicou Fernando Arruda, coordenador do curso de medicina do campus Bela Vista da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). Foi por lá que conversei pessoalmente com três dos futuros médicos que apresento nesta reportagem: Raphael Henrique Pires Fanin, 23 anos, Juliana Papini Berto, 24, e Thiago Borges Muniz, 25.
Ainda falei com Vitor Gabriel Lopes da Silva, 22, aluno da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), me aproveitando de uma tecnologia fruto dessa curva exponencial da tecnologia: o WhatsApp. Foi o jeito que conseguimos dar para nossas agendas baterem em meio às inúmeras atividades extracurriculares com as quais ele está envolvido.
Se queremos construir uma nova Saúde, que priorize a qualidade de vida e o bem-estar humano e ainda seja sustentável como negócio, dependemos de novos médicos. Então, vamos conhecer um pouco daqueles que provavelmente encontraremos nos consultórios como pacientes nos próximos anos:
Vitor Gabriel Lopes da Silva, 22 anos, estudante do 3° ano de Medicina da Unifesp
Fiz sete perguntas para o Vitor, que resultaram em 40 minutos de áudios no WhatsApp. Da morte do pai justamente na época dos vestibulares aos estudos extracurriculares voltados aos cuidados paliativos, ele dividiu comigo um pouco do que acredita ser necessário para o médico do futuro:
“Quando era criança, queria ser muitas coisas: advogado, engenheiro, piloto de avião, diplomata. Mas acredito que escolhi a medicina por dois fatores: meus padrinhos, que são médicos do Sistema Único de Saúde (SUS) de Ribeirão Preto e sempre foram minha inspiração, e a oportunidade que a Unifesp me deu de participar de um workshop aberto quando eu ainda estava no ensino médio. Foi um dia inteiro de atividades ligadas à medicina que me fizeram perceber que aquilo era pra mim.
No último ano do ensino médio, em 2015, resolvi fazer também cursinho pré-vestibular, pois consegui uma bolsa de estudos que cobria 100% da mensalidade. Mas foi um ano difícil, pois meu pai ficou muito doente. Quando foi finalmente diagnosticado com câncer, a doença já tinha se espalhado. E foi nesse processo doloroso para toda a família que eu tive contato pela primeira vez com os cuidados paliativos, uma das áreas da medicina pela qual sou apaixonado. Meu pai morreu no dia 1° de novembro de 2015, e eu até prestei os vestibulares e o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) naquele ano, mas não tinha cabeça – embora não tenha ido tão mal quanto imaginava. Passei no vestibular no ano seguinte, em 2016.
A morte do meu pai moldou muito do que espero ser como médico. Eu me envolvi em inúmeras atividades na Unifesp: sou representante de sala, participo de ligas, dou aula no CUJA (Cursinho Pré-Vestibular Jeannine Aboulafia, um cursinho popular para alunos de baixa renda do ensino médio mantido pela universidade) e me interesso em estudar os variados aspectos da medicina que têm relação com a humanização. Claro que a tecnologia é importante, e eu acredito que será fundamental saber como lidar com ela na prática médica do futuro. Mas é ainda mais importante aprender sobre empatia, compaixão e resiliência – coisas que parecem óbvias, mas não são. O médico do futuro é aquele que sabe ter esse olhar para o paciente sem perder o caráter clínico fundamental da profissão.”
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Raphael Henrique Pires Fanin, 23 anos, estudante do 4° ano de medicina da USCS
Raphael vem de uma família que não tem médicos, mas a mãe também atua no setor de Saúde, como dentista. Além do curso de medicina, ele faz parte de inúmeras atividades desenvolvidas na universidade, como parte da atlética e do centro acadêmico. Ele se vê um dia em uma posição de gestor. “Ministro da Saúde, quem sabe?”, brinca, mas diz que quer um dia ser um líder que inspira e participa ativamente da transformação do setor.
“Eu fiz três anos de cursinho e foi um período complicado porque lá é o lugar para a gente engolir o que puder e do jeito que vem. É um modelo de ensino tradicional, e eu tive dificuldades para entender essa energia de ter de abdicar de tudo para estudar. Fui ganhando maturidade com o tempo e percebi que, se queria medicina, tinha de ser daquela forma.
Foi na graduação que conheci o PBL [Problem Based Learning, metodologia ativa de ensino que estimula os alunos a vivenciarem a medicina prática desde o início do curso]. E agora não consigo me enxergar em outro lugar. Aqui temos grupos menores e aprendemos a trabalhar em conjunto, algo fundamental para o médico, pois na prática ele faz parte de uma equipe multidisciplinar. Mas o maior ganho de estar em um curso assim é a possibilidade de ter contato com o paciente desde o primeiro semestre, pois uma coisa é você simular um caso na sala de aula e a outra é a vida real.
Vejo a tecnologia como parte da prática médica. O mais importante é não abrir mão da capacidade de aprender sempre – e a tecnologia está ali para me apoiar no diagnóstico. Se eu não sei, busco informação e, mais que isso, desço daquele pedestal onde a gente costuma ver os médicos e participo junto com o paciente da construção do seu processo de cuidado.”
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Juliana Papini Berto, 24 anos, estudante do 4° ano de medicina da USCS
Juliana foi a única estudante do sexo feminino com quem conversei. Quando cheguei à USCS para o bate-papo com os alunos. Filha de médicos, ela garante não ter escolhido a profissão por imposição familiar. “Eu brincava de receitar remédios para as minhas amiguinhas, mas antes de passar as recomendações, perguntava para o meu pai se estava certo.”
“Eu nunca gostei desse discurso de profissão nobre, ou de endeusar o médico. Sem os enfermeiros e os outros profissionais que compõem a equipe de Saúde, o médico não faz nada. E por isso eu me identifiquei com a metodologia do PBL: porque além de ser investigativa, ela reforça um trabalho em equipe que considero fundamental para ser um bom profissional.
Faço estágio e percebo que até o manejo dos pacientes é diferente pelo método de ensino. Se você pergunta para um médico tradicional o que é pneumonia, ele vai te falar tudo sobre a doença. Mas ele não consegue enxergar se aquele paciente está mais suscetível a adoecer por passar por outras dificuldades na sua vida pessoal, como o lugar onde mora ou a dificuldade financeira para comprar alimentos saudáveis, que também são relevantes para o diagnóstico, mas que costumam ficar de fora dele.
A minha participação na atlética é uma forma de treinar as habilidades em gestão, que é um aspecto que me interessa. Eu busco gerir da forma mais horizontal possível, sem tomar decisões sozinhas, prezando pela comunicação e o consenso. É da mesma forma que pretendo me desenvolver para ocupar um cargo de gestão no futuro. Acredito que todo profissional deve saber como administrar a assistência e como usar a tecnologia a favor do paciente.”
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Thiago Borges Muniz, 25 anos, estudante do 3° ano do curso de medicina da USCS
Thiago chegou um pouquinho depois à sala de reuniões onde me encontrei com os alunos da USCS. Então, com ele, fui direto ao ponto: me conte como foi sua primeira experiência com um paciente. O relato da primeira consulta que ele acompanhou, quando completava duas semanas de aulas na graduação, demonstra como ser médico vai além de cursar medicina. E é por isso que encerro a reportagem com esse depoimento:
“Antes de atender o paciente, eu participei das simulações com atores na universidade. Mesmo que elas tenham me preparado para o que eu poderia encontrar, a realidade é diferente. Eu acompanhei uma visita com a equipe de Saúde da Família da UBS [Unidade Básica de Saúde] de Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo. É um lugar afastado e com pessoas de classe baixa. A paciente foi uma senhora de 60 anos com tuberculose óssea – e quando eu li o nome da doença, achei que alguém tivesse escrito errado no prontuário. Nunca tinha ouvido falar. Levei para a sala de aula depois e discutimos os detalhes sobre a doença e os vários tipos de tuberculose que existem.
Mas o mais interessante da visita domiciliar é ver como as pessoas se sentem valorizadas. E a paciente foi muito receptiva também. Ela sabia que eu estava lá para aprender com ela e para que a gente pudesse, juntos, construir um plano de cuidado em que ela se engajasse.
O meu exemplo de médico é meu avô, que tem 50 anos de formado e ainda exerce a profissão atendendo pelo SUS em Brejo, cidade do Maranhão. E ele não se cansa de aprender. Um dia a gente conversava e ele ficou impressionado por eu atender pacientes ainda na graduação e, mais que isso, por saber fazer uma anamnese completa. Ele perguntou por onde eu estava estudando, e eu expliquei que além das aulas, eu pesquisa artigos científicos na internet. E meu avô, um médico de uma cidadezinha de 20 mil pessoas, com 50 anos de experiência, me pediu para ensiná-lo a achar esses artigos e se aprimorar na profissão. A tecnologia é para todos.”
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