Eu desejo que você, um dia, permita-se experimentar o estado bruto da existência. Por que?

Por Silvia Paladino

Na alta altitude, a saturação de oxigênio no sangue cai drasticamente. Isso significa um golpe na quantidade de combustível de vida que é bombeado para todo o organismo. O coração bate mais rápido e o cansaço se instala ao sinal de mínimo esforço. Há a supressão das funções essenciais do corpo, como a digestão, pois toda a energia sai em socorro das reservas do sistema cardiorrespiratório.

Para a medicina de montanha, as regiões mais elevadas do planeta se dividem em três níveis: grande altitude (entre 1500 e 3500 metros acima do nível do mar); altitude muito elevada (entre 3.500 e 5500 metros); e extrema altitude (acima de 5500 metros). Como uma máquina biológica programada para resolver problemas, o corpo humano pode se adaptar às alturas, produzindo mais células sanguíneas e, assim, mais veículos de transporte do oxigênio para as engrenagens orgânicas. Mas nenhum período de aclimatação permite ao ser humano viver permanentemente em altitude extrema. O céu não nos acolhe, apenas nos permite chegar temporariamente mais perto.

Dia 27 de fevereiro de 2022, às 16h: cume no Barrancas Blancas, de 6.100 de altitude, nos Andes chilenos

A morte é sempre uma possibilidade onde a vida não é bem-vinda. A morte vaga pelas montanhas como uma entidade onipresente e elegante, convidando os corações quentes a viverem o momento presente. Nele, repousam a dor de cabeça, o intestino em desordem, a tontura ao sair da barraca ou entrar nela, o chão de dormir rígido e desnivelado, as vias respiratórias ressecadas, o nariz que suja o papel de sangue, a saturação abaixo dos 80%, o aumento da pressão arterial, a redução dramática dos padrões de higiene da vida “civilizada”. No momento presente, o tempo é abundante e, o organismo, um marujo experiente que conserta o barco enquanto a tempestade invade o convés.

 Nem a mais perfeita estratégia de aclimatação, porém, pode conter os fenômenos externos e extremos. Quando as tempestades rugem, os ventos aceleram, as avalanches largam e as pedras rolam, acredite, você não desejará estar lá para ver.

Ainda assim, a montanha chama. Nos mais remotos, selvagens e extraordinários lugares do planeta, instantes de lucidez arrebatam os teus delírios mais convincentes. Nas alturas, você não precisa do que não precisa – imediatismo, jantares caros e taças de cristal são apenas tralhas que atrasam a jornada. Pesam. Envelhecem e fazem envelhecer. Eu desejo que você, um dia, permita-se experimentar o estado bruto da existência.

Por que?

Após nove horas de caminhada sobre terrenos duros, alcancei o cume do Barrancas Blancas, sob os olhos vigilantes e amorosos do pessoal do Gente de Montanha 

Eu poderia repetir aqui uma série de tentativas genuínas e coerentes de responder essa pergunta: sentir a própria irrelevância diante de criaturas feitas de rocha e calor; por outro lado, ser digno do poder adquirido de chegar onde poucos estiveram; ou, ainda, superar-se física e mentalmente. Não há nada de errado nessas elaborações do pensamento. Mas elas sempre serão limitadas. Pisar no cume de uma alta montanha é só o passo final de uma construção de inúmeras etapas e sensações. É um processo puramente emocional, fruto de uma verdade inevitável: você é a montanha. Não está dentro, fora, abaixo ou acima dela. Nesse momento, você descobre a origem de todas as doenças, os dramas e as ilusões da mente humana.

O que eu gostaria de lhe dizer, se você chegou até aqui, é que não tema, que não desanime, que não se iluda. Até que você se sinta confortável na própria pele, engrossada pela poeira da qual foi feita, percebendo a natureza agir acima da camada da consciência individual, até que você saiba que não há mais nada do que se libertar.

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