A relação entre o homem e a tecnologia é retratada há décadas na ficção, mas especialista alerta sobre riscos da humanização desse tipo de relacionamento


Por Tatiana Paiva

Parece até um clichê romântico como o da música “Eduardo e Mônica”, mas Bruna Pereira e Felipe Henrique Gomes não tinham mesmo nada em comum, a não ser o fato de morarem na mesma cidade e a decisão de conhecerem novas pessoas. Era um sábado à noite, em 2014, quando o “match” aconteceu. No aplicativo de relacionamentos, a notificação mostrou que o interesse era mútuo, com base nas fotos publicadas por ambos e na sinergia entre os gostos pessoais. Então, foram dias e noites de conversas, troca de números de celular, migração do bate-papo para o WhatsApp, até o primeiro encontro presencial.

Em dois meses, Bruna e Felipe estavam namorando. Um ano e meio depois, veio o pedido de casamento. Em 2017, chegou o dia da cerimônia e da festa. E, em março de 2021, nasceu Betina, a celebração maior de um amor que de líquido nada tem, ao contrário do que as relações desenvolvidas no ambiente virtual podem sugerir. No futuro,  quando perguntarem a Betina como seus pais se conheceram, é provável que a história dela não seja a única entre os amigos. 

“Costumávamos frequentar lugares diferentes, ele é mais velho e tínhamos pouquíssimos amigos em comum, mas sempre nos demos muito bem e com muita química desde o início. A gente não iria se conhecer se não fosse pelo aplicativo. Acredito que foi realmente um encontro, tinha que acontecer. O aplicativo só uniu e facilitou esse processo”, conta Bruna.

Mas nem sempre o final é feliz. Muitas vezes, nem o começo é.

Há quem leve essa relação ao extremo, deixando de entender a tecnologia como meio para encará-la como resultado. Há décadas a ficção retrata histórias de amor entre homens e máquinas, de acordo com a evolução tecnológica da época. “Cherry 2000”, “Mulher nota 1000”,  “Blade Runner”, “Amores Eletrônicos” e, o mais recente, “Ela”, são títulos que narram o imaginário popular – que nem sempre é tão imaginário assim. 

No Japão, Senji Nakajima, de 61 anos, deixou o casamento e os dois filhos para viver com Saori, uma boneca de silicone. Ainda que também pareça obra de ficção, a estranheza da relação traz à tona a  solidão de Nakajima, que costumava viajar a trabalho e ficar longos períodos longe de casa. A relação com a boneca começou como uma forma de suprir a carência, mas se tornou uma paixão que, hoje, envolve levar a sua companheira artifical para todos os lugares em uma cadeira de rodas, comprar presentes e assistir filmes juntos.

Você pode pensar: ah, é só uma boneca de silicone usada de maneira “inadequada” por um sujeito com distúrbios psicológicos. Mais ou menos. Esses inocentes brinquedos de sexo logo serão totalmente aposentados por máquinas eróticas como a Harmony, da Realrobotix, que pode custar mais de 40 mil reais. É uma boneca em tamanho natural programada com inteligência artificial e que simula expressões humanas enquanto fala. Até 2045, um em cada 10 jovens farão sexo habitualmente com robôs humanóides, segundo o relatório Future of Sex.

Portanto, a história de Nakajima não é um caso isolado. Em 2020, também no Japão (você acha que é coincidência, né?), foi lançado o LOVOT, um robozinho criado por uma startup para ser um brinquedo de estimação pronto para amar. O robô foi projetado para exigir carinho do seu dono a todo momento. Com câmera termal instalada na cabeça e muitos sensores sob a superfície peluda, o LOVOT levanta os bracinhos para que seja pego, abraçado e “amado”.

Autor do best-seller “Amor e sexo com robôs”, de 2007, David Levy, pesquisador britânico de inteligência artificial, declarou em entrevista que acredita que as pessoas vão se apaixonar por robôs a ponto de casar com eles, e esse tipo de casamento será considerado legal em alguns países em torno de 2050. Para ele, essa possibilidade se tornou ainda mais palpável depois que a robô Sophia, da Arábia Saudita, ganhou cidadania.

Para Simone Magaldi, filósofa, pedagoga e especialista em Psicologia Junguiana, esse tipo de comportamento em busca do amor até nos hábitos de consumo é reflexo do momento que vivemos, com excesso de tecnologia e afastamento das sensações – fatores agravados pela pandemia da Covid-19.

“As pessoas se vêem apaixonadas por uma projeção do inconsciente, algo idealizado, que não vai decepcionar, não vai trair ou agredir”. Segundo Simone, isso é ainda mais intenso em países como o Japão, em razão do contexto cultural e do alto consumo de tecnologia. “Lá, as pessoas vivem mais a solidão e a frieza sensorial, que é facilmente projetada em uma máquina. É mais difícil algo desse tipo acontecer no Brasil, porque temos um comportamento diferente, com mais abraço, toque e intensidade”.

Simone acredita que relações com máquinas, ou mesmo relacionamentos virtuais, são refúgios da realidade. O medo da volatilidade, do apaixonamento e de qualquer possível dor ou sofrimento em uma relação dão lugar ao isolamento e à solidão. “Por outro lado, a máquina não te recusa. A rejeição e todos esses medos podem aparecer mesmo no contato via aplicativos de relacionamento, porque naquele ambiente, por mais plástico e em busca de uma idealização que seja, ainda são pessoas procurando pessoas. Elas estão buscando o toque, o contato físico”. 

A especialista explica, ainda, que esse tipo de comportamento é considerado um desvio de conduta, já que o ser humano  deveria se relacionar amorosamente com outros seres humanos. “Não tem como esse tipo de relação com máquinas ser um amor genuíno. Trata-se de um desvio psicológico, uma patologia como a obsessão e o ciúmes – que saem do espectro da realidade”.

“Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer que não existe razão?”.


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