Como templos, sacerdotes e fiéis estão criando — e sendo criados — pela transformação digital na relação entre pessoas e suas crenças


Por Tatiana Paiva

O que um templo de quatrocentos anos e um robô têm em comum? A resposta é mais simples do que parece: a missão de passar adiante os ensinamentos de Buda. O templo de Kodaiji, em Kyoto, no Japão, “contratou” um androide de mais de 1 milhão de dólares para atrair os jovens. Mindar é o seu nome, mas também é conhecido por seu apelido – Kannon, divindade budista da compaixão. O robô “nasceu” na Universidade de Osaka para propagar os sermões dos Sutras do Coração em japonês, com versões traduzidas para inglês e chinês para os turistas.

Os administradores do templo pediram à equipe da universidade que desenvolvessem um androide que pudesse pregar os ensinamentos de maneira fácil e compreensível. Mindar recita sutras, adverte sobre os perigos da vaidade, do desejo, da ira e do ego. Possui ainda uma câmera de vídeo no olho esquerdo, para ter “contato visual” com as pessoas que recebem o ensinamento.

O quão estranho tudo isso pode parecer para a tradição da fé, presente desde os primórdios da humanidade?

No sentido literal e mais abrangente, ter fé é o sentimento de confiar e acreditar em algo ou alguém, mesmo – e geralmente – sem nenhum tipo de comprovação ou garantia. Na filosofia, é vista também como o antagonismo da razão, sendo essa questão debatida, entre conflitos e contradições, por gregos, romanos e cristãos da Idade Média. E, embora as religiões tenham se apropriado do conceito, ele tem diferentes significados de acordo com cada bandeira espiritual e cada repertório.

Como você pode imaginar, foi difícil para mim pensar em como associar a fé,  algo tão pessoal e abstrato, com disrupção e inovação. Demonstração disso é que iniciei as pesquisas para este texto, o terceiro da série “Humanitech”, em agosto de 2020. Não demorei para perceber que fé e tecnologia já caminhavam juntas há algum tempo, ainda que timidamente. Também era evidente que,  assim como nos principais setores da economia, a pandemia da Covid-19 agiu como um divisor de águas: a crise de saúde pública acelerou a transformação digital quando o assunto é a forma de exercer as crenças.

Missas e cultos online, lives com líderes religiosos e uso das mídias sociais para a divulgação e propagação da fé ajudaram a manter as pessoas conectadas com sua espiritualidade quando elas mais precisavam. E ainda teve igreja que não precisou fechar suas portas desde o início da pandemia, pois, na realidade, elas nunca tinham sido abertas. A VR Church, por exemplo, é uma igreja em realidade virtual criada pelo pastor DJ Soto, que segue os mesmos princípios e rituais de outras instituições cristãs tradicionais. Ela foi criada com a proposta de que as novas tecnologias contribuam para a propagação da fé para mais pessoas.

Em um dos vídeos de divulgação da VR Church, uma fiel (representada por seu avatar) fala sobre a importância de poder acompanhar os cultos a distância, em casa, já que tem dificuldades de interações sociais. Também representado por seu avatar, o pastor DJ Soto explica que o “formato” da igreja permite que fiéis de diferentes países e fusos horários possam praticar a fé onde quer que estejam. 

Outro exemplo de como a transformação digital é capaz de mudar a relação das pessoas com a ação efetiva da fé é o aplicativo Tree of Life AR, lançado pela Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias. O app utiliza realidade aumentada para aproximar os membros – principalmente crianças e jovens – dos ensinamentos das escrituras. Assim como o nome em inglês sugere, durante o uso do aplicativo é possível visualizar a árvore da vida, uma das metáforas citadas no Livro de Mórmon, e a experiência une o ambiente ao redor, com efeitos sonoros de água corrente, risos e músicas, e a interpretação das mensagens religiosas. 

Se “ter fé é acreditar naquilo que não se pode ver”, como acreditou e propagou Santo Agostinho, os novos formatos, ferramentas e experiências proporcionados pela tecnologia estão reforçando e, ao mesmo tempo, redefinindo esse pensamento. Mas até que ponto essa mudança de cultura afeta, de fato, a relação das pessoas com a fé?

O templo é onde o fiel está?

Durante a pesquisa para essa reportagem, um questionamento passou a rondar minhas conversas com a Silvia Paladino, minha editora nessa saga: com tanta tecnologia e distanciamento físico, o que será da experiência proporcionada pelos templos, historicamente vistos como espaços sagrados, a materialização da “presença” divina, símbolos das grandes religiões, palcos de rituais antigos, muros que protegem e renovam a conexão do fiel com suas crenças? Se cada um pode exercer sua fé onde e como quiser, esses santuários correm o risco de perder a sua força na consolidação das religiões?

Acredite, tive que colocar muito a minha fé em prática para conseguir um espaço na agenda de quem realmente entende sobre esse universo e poderia me ajudar a responder tal pergunta. E foi assim que conheci o Rodrigo Queiroz, sacerdote e diretor-fundador da Umbanda EAD, uma plataforma online criada em 2006 para disseminar os conhecimentos da umbanda. Segundo Queiroz, em quase 15 anos, mais de 40 mil alunos puderam aprofundar os conhecimentos sobre a religião de raízes africanas. 

“A umbanda é muito baseada na transmissão de conhecimento, e isso sempre aconteceu no ‘tête-a-tête’. A tecnologia foi uma forma de romper fronteiras e paradigmas na transmissão desse conhecimento, mas, no início, muitas pessoas consideravam que isso era um tipo de profanação”, ele contou. Queiroz me explicou também que os cursos ministrados na plataforma aprofundam os conhecimentos na religião e suas práticas, mas não há a ritualização como em um templo. 

“A pandemia tem sido um momento muito difícil para a umbanda, que depende do terreiro para essa proximidade. Falta o ambiente, o encontro, e esse é um buraco que não dá para fechar”. Durante os primeiros meses do isolamento social, o sacerdote conduziu 19 giras online, além de ter ensinado muitas pessoas a fazerem seus rituais em casa.

“Eu entendo a tecnologia como um benefício que ajuda na disseminação do conhecimento e da fé, e até para a ritualização nesses tempos que estamos vivendo, mas ela é incapaz de substituir a presença no templo. Todas as lives que fizemos só aumentaram ainda mais a saudade do terreiro”.


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