Como um vibrador idealizado por mulheres foi banido da maior feira de eletrônicos do mundo em 2019 e, um ano depois, abriu as portas do mesmo evento para diversos produtos de saúde sexual

“Mia, a gente tem uma proposta de pauta super legal, tenho certeza que você vai amar!” 

Foi assim que a Silvia Paladino me recebeu em novembro de 2019, logo depois que voltei de maravilhosas férias em Arraial D’Ajuda, na Bahia. Ainda com a cabeça meio na praia, achei complicada aquela história de escrever sobre as mudanças que o desenvolvimento tecnológico vem trazendo para quatro grandes elementos da nossa vida em sociedade – e, também, da nossa individualidade: sexo, amor, morte e fé. Todos eles  permeados por tabus. Mas como não sou de negar desafios, fui cavar histórias. A pauta virou a série “Humanitech: transformação digital em setores excepcionais”, e estreia com este texto sobre SEXO.

Assim mesmo, com caixa alta, para não deixar dúvidas, caro leitor. O sexo, fonte de prazer e origem da vida, também está passando pela sua transformação digital. Você pode até se perguntar: “mas Mia (pode me chamar de Mia), sexo é a união de dois corpos. É essencialmente físico. O que tem de tecnologia nisso?”. E eu respondo: Osé.

Osé não é o apelido de um José qualquer, com o perdão da piadinha infâme. Osé é um exemplo de como a indústria do sexo não saiu incólume da revolução tecnológica. 

Osé é um VIBRADOR.

De novo, eu peço licença para usar caixa alta. Dá a impressão que estou gritando? Dá. Mas falar de vibrador, assim como de sexo, suscita aquele tabu básico sobre o prazer feminino. Mas sim, mulheres também se masturbam, vibradores existem aos montes, de todos os tipos. E aquelas que os experimentam, em geral, adoram.

E o que o Osé tem de diferente? Quem me explicou foi a Lora Haddock, médica que criou o produto. Ela respondeu às minhas perguntas por e-mail, em fevereiro. “Quando eu estava na faculdade de medicina, tive o que chamo de Santo Graal dos orgasmos: um orgasmo misto. Tudo o que eu conseguia pensar, desde então, era como fazer de novo”, relembrou.

Foto: Divulgação/Lora DiCarlo

Lora explicou que não havia nada no mercado que falasse em fisiologia feminina e vaginal. Ela resolveu, então, iniciar pesquisas na área. Reuniu dados anatômicos de centenas de mulheres com o objetivo de criar algo que pudesse entregar esse tipo de prazer não só para ela, mas para todas. Ao sair da faculdade, começou a produzir uma maneira totalmente nova e diferente de alcançar o orgasmo perfeito. “Em 2017, fundei a Lora DiCarlo e apresentei ao mundo as tecnologias sexuais inspiradas no movimento humano.”

Movimento humano? É. Por meio de microrrobótica, o Osé imita todas as sensações de boca, língua e dedos, proporcionando uma sensação semelhante à que se tem com um parceiro real. A equipe de Lora é composta principalmente por mulheres – que sabem bem do que estão falando.

Um prêmio polêmico

Mas nem bem foi lançado e o Osé causou uma baita repercussão. Em 2019, o vibrador ganhou o Prêmio Honorário para Produtos de Robótica ou Drones na maior feira de eletrônicos do mundo, a Consumer Electronics Show (CES), realizada em Las Vegas, nos Estados Unidos. Com o reconhecimento, ganhou também o direito de ser exibido em um estande na feira. No entanto, um mês depois, os organizadores retiraram a condecoração e impediram o vibrador – e suas criadoras – de participar do evento.

Oi?

O comunicado encaminhado à Lora tentava ser cuidadoso, mas dizia que “as inscrições consideradas pela CTA [Consumer Technology Association, organizadora da CES], a seu exclusivo critério, como imorais, obscenas, indecentes, profanas ou não, serão desqualificadas. A CTA se reserva o direito, a seu exclusivo critério, de desqualificar qualquer inscrição a qualquer momento que, na opinião da CTA, coloque em risco a segurança ou o bem-estar de qualquer pessoa”.

Lora não se calou: “Não considero o sexo obsceno. Ele é sagrado”.

Ela iniciou, então, uma cruzada para defender o Osé, especialmente na internet. O barulho deu resultado. A organização da feira voltou atrás (mais uma vez) e, na edição de 2020, abriu de vez as portas da CES para o Osé – e, com ele, criou um setor inteiro dentro da feira dedicado a produtos de bem-estar e qualidade de vida. “Estamos orgulhosas de nossa campanha em prol da indústria da saúde sexual. Nossa história e experiência causaram uma resposta extremamente positiva, o que teve impacto direto no nosso crescimento em 2019 e nos deixou entusiasmadas com o potencial de 2020”, conta Lora.

Ponto de virada

A médica acredita que a sociedade está num ponto de virada em relação à saúde e ao bem-estar sexual, e que a tecnologia tem um papel de destaque nesse contexto. Os chamados “brinquedos” sexuais não servem mais somente para “diversão”, mas ganharam, nos últimos anos, fins terapêuticos, tratando disfunções sexuais comuns e que, em geral, encontram pouca resposta com terapias convencionais. 

Muito dessas mudanças e da maior abertura – do mercado e das pessoas – em falar sobre sexo e prazer é fruto da revolução feminista. E conforme as mulheres ganham voz na luta por direitos dentro de uma sociedade ainda patriarcal, torna-se comum e até esperado que surja uma indústria voltada especificamente para elas. Estima-se que o mercado de brinquedos sexuais, por exemplo, cresça de US$ 23,7 bilhões, em 2017, para US$ 35,5 bilhões até 2023, de acordo com um estudo da ResearchAndMarkets. 

É claro que há, também, o lado sombrio dessa transformação – como o uso crescente de robôs ultra tecnológicas como substitutas sexuais ou mesmo afetivas, fenômeno que tem se tornado assustadoramente comum em países como a China. Basta lembrar do filme “Her” (é a segunda vez que escrevo sobre ele por aqui e, sério, se você não viu, veja). Ao risco espalhado pelos fatalistas tecnológicos de que um robô tome seu emprego, some agora o perigo de perder o companheiro/companheira para a tecnologia.

Deixando extremos como esses de lado, a transformação digital está aí, impactando indústrias de absolutamente todos os setores. E se inovar é fazer de um jeito diferente, que a tecnologia possa, também, incentivar a sociedade a pensar de outras maneiras sobre nossas facetas mais complexas e polêmicas, derrubando tabus que já em nada combinam com o século 21.

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